Solange Machado
Sou
Solange Gonçalves Machado, uma mulher, negra, da periferia, Yálorixa (mãe de
santo) do “Ilê Axé Ara Iná Afinná”, orgulhosa filha de uma doméstica e de um vigia
noturno.
Tive
meu primeiro contato com as religiões de matriz africana aos 13 anos (hoje
tenho 39) pelas mãos de uma tia que achava meus problemas de saúde muito
estranhos e me levou a um terreiro (denominação típica do local acontecem os
rituais religiosos de matriz africana) de umbanda para ter certeza que meus
males eram físicos e não espirituais.
A
primeira vez que assisti uma gira (reunião com adeptos e simpatizantes dos
cultos realizados para evocar os ancestrais que serão cultuados naquele dia)
está gravada em minha memória até os dias de hoje. Era uma quarta-feira e os
caboclos estavam sendo chamados, tudo era colorido e maravilhoso. Os cocares,
as contas, as velas coloridas brilhando sobre o congá (altar dos terreiros de
umbanda onde ficam as imagens e oferendas para nossos ancestrais).
Aquela
dança, a música, o som do tambor e a energia do lugar falavam com meu corpo e
ele respondia mesmo sem eu entender nada do que estava acontecendo.
Desta
época até 1994 visitei vários terreiros de umbanda e assisti muitas giras. Conheci a dança dos exus, pombo-giras, povo cigano, boiadeiros, marinheiros e
outras entidades maravilhosas, mas ainda me sentia como se faltasse algo.
No
final daquele ano conheci o candomblé. Fui convidada para uma “saída de santo”
(festa feita para apresentar o novo iniciado e seu orixá à sociedade do
candomblé) na casa da Dona Maria de Oxóssi (segundo a tradição dos
nossos ancestrais, Oxóssi é a divindade responsável pela agricultura e caça), no bairro
Cocaia em Guarulhos.
Conhecer Dona Maria foi intrigante. Aquela mulher de pele negra, fisionomia indígena e
presença masculina me confundia, pois ainda não possuía entendimento suficiente
para reconhecer o quanto nossa
ancestralidade está presente em nós. Ela vivia em um barraco de madeira
que hora era sua casa hora era seu terreiro.
Esse
encontro foi decisivo para o que seria minha vida dalí em diante. Algo em mim
“acordou”, um calor que nunca havia sentido tomou conta de mim e foi ficando
mais forte durante toda a festa.
Quando Dona Maria entrou na sala incorporada com seu orixá Oxóssi eu fiquei impressionada. Seus gestos, sua dança, a batida do
tambor e toda aquela força me contavam sua história. Podia ler claramente suas
lutas, suas caçadas e vitórias naquele conjunto de informações - mesmo eu não
conhecendo nada de candomblé ou mitologia dos orixás.
Em
1998 fui iniciada nesta mesma casa e em 2000 comecei e entender que cabia mais do
que prática religiosa alí - cabia também oralidade, educação, experiência de
vida e valorização cultural.
Em
2002 deixei a casa de Dona Maria de Oxóssi e passei a zelar meus
orixás no Abassá de Xangô sob a orientação de Mãe Dida de Xangô e Pai Alexandre
de Odé, na Vila Barros, também em Guarulhos. O Abassá de Xangô é uma casa com
muitos filhos e reconhecida em vários estados por seu tempo de existência,
raízes (termo usado para indicar origem ou continuidade) em casas tradicionais como
o renomado “Sitio de Pai Adão” e sua orientação assertiva no culto aos orixás.
A
convivência no Abassá de Xangô me mostrou as diversas possibilidades de
compartilharmos tudo que aprendemos no candomblé com as outras pessoas. A
grande diversidade de saberes que lá convivem contribuíram muito para meu
entendimento sobre a diferença entre os rituais religiosos e a cultura afro.
Embora estejam ligados cada um pode habitar um espaço específico sem interferir
no outro sempre que necessário.
Nesse
tempo a paixão pela dança dos orixás já havia me tomado. Nunca tive curiosidade
de estudar academicamente sobre o assunto mas cada vez que um orixá estava
dançando me sentia em transe. Cada movimento que os Aboros (divindades
masculinas) ou as Yabás (divindades femininas) faziam me deixavam mais encantada
e me mostravam mais sobre a história deles e o quanto algumas dessas
historias se pareciam com a minha.
Foi
lá que conheci Adriana Aragão, uma “irmã de santo” (um dos tratamentos entre
mulheres que pertencem a um mesmo terreiro) que me explicou e mostrou na prática
algumas possibilidades de uso de nosso conhecimento na educação, cultura e
arte.
Adriana me apresentou um grupo do qual ela fazia parte chamado
Oriashé. Quando vi aquelas mulheres tocando, cantando e dançando a mitologia
dos orixás para todos que quisessem ouvir e na rua, fiquei abismada. Nunca
pensei que pudéssemos esparramar para os “quatro cantos” do mundo nossa cultura
daquela forma.
Foi
inspirador ver um cortejo enorme de pessoas dançando e acompanhando o ritmo dos
instrumentos tocados nos terreiros sem medo, sem preconceito, sem rótulos ou
perseguição. Uma emoção incrível!
Em
2007 fui convidada para dar apoio à coordenação do corpo de dança do bloco afro
Ilú Obá De Min, um grupo formado por pessoas que haviam deixado o grupo Oriashé
e que tinham como líderes Adriana Aragão, Elisabeth Belisário e Girlei Miranda.
Essa vivência tornou mais claro para mim o quanto era importante mostrar ao
mundo nossa cultura. Era como se, por um momento, a tradição africana pudessem
voltar a ocupar seu lugar junto ao povo. Como se as religiões de matriz
africana e toda cultura nela guardada tivessem seus direitos realmente
respeitados.
Podíamos
ver no rosto da multidão, que assistia os ensaios e acompanhavam o bloco no
carnaval, a expressão de felicidade por ver o reconhecimento e respeito à sua
cultura ali representados.
Dentro
deste bloco havia uma diversidade fantástica de pessoas, acadêmicos, curiosos,
adeptos das religiões de matriz africana, pesquisadores, etc. Nas conversas com
as pessoas entendi como aparentemente somos vistos no
mundo acadêmico – até então meu conhecimento referente aos orixás se limitava
às lições aprendidas com o dia a dia do terreiro – e qual o entendimento destas
pessoas sobre nossa cultura. Fiquei muito surpresa ao ver que elas valorizavam
e reconheciam a necessidade de difusão de nossa cultura fora dos terreiros, que
liam muitos livros, defendiam teses e elaboram projetos sobre essa temática.
Inspirada
por todo esse conhecimento adquirido desde então, desenvolvi vários trabalhos
como palestras, oficinas, apresentações, debates, formação voltada para
desconstrução do preconceito, valorização da cultura afro brasileira,
reconhecimento da importância histórico cultural das religiões de matriz
africana, empoderamento do povo negro, valorização e respeito a mulher, etc.
A
maior parte destas atividades ainda ocorrem, em espaços públicos como CEUs, centros
culturais, teatros, parques e até mesmo nas ruas.
Ao
longo da construção do meu conhecimento posso citar como mestras Maria Vitoria
de Lima Vieria (Maria do Oxóssi), Valdeilda Dias (mãe Dida de Xango), Roseneide
Ribeiro (mãe pequena do Abassá de Xangô), Adriana Aragão (percursionista e irmã
de santo), Elizabeth Belisário (percursionista e presidente do Bloco Afro Ilú Obá
De Min), Girlei Miranda (percussionista, membro do Bloco Afro Ilú Obá De Min e
de várias comunidades do Samba Carioca), Giselda Pereira (minha filha de santo,
contadora de historias, professora, arte educadora, gestora de projetos de
cultura, bailarina, etc) mulheres que me servem de referência e inspiração para
continuar desconstruindo o preconceito, empoderando mulheres e criando novos
caminhos que levem nossa cultura a todos que queiram conhecer e sentir a força
de nossa ancestralidade.
Como
mestres tenho Alexandre Dias (pai Alexandre de Odé), Cecílio Souza (pai pequeno
do Abassá de Xangô), Emerson Thomazini Machado (Axogum do Abassa de Xango e meu
esposo à 21 anos). Homens que com muita paciência e humildade dividem comigo o
saber que recebem todos os dias.
Cito
ainda todos os membros das casas de umbanda e candomblé que conheço e convivo
além da minha, pois essa convivência mantém viva nossa oralidade, e a oralidade
mantém viva e forte nossa cultura ancestral por todos estes anos.